Clássico de Clarice Lispector que inspirou o filme A Paixão de G.H., do diretor Luiz Fernando Carvalho com Maria Fernanda Cândido.
Clarice, me dá tua mão.
Tudo parece de novo impossível nesse frêmito de eternidade que é o presente, mas confio na nossa aproximação: aconteceu daquela vez o impensável; adaptar
A paixão segundo G.H. para o teatro. Não fui sozinha como você, embora quando estive ali, cara a cara com a barata, era eu mesma, sozinha como um caco de vidro, um cachorro e uma galinha estão sós e cara a cara.
Com o quê?
Consigo.
Eu fui, ao encarnar durante mais de dois anos a G.H. num monólogo para o teatro – adaptado por Fauzi Arap e dirigido por Enrique Díaz –, uma pessoa sem a pessoa que eu era antes para fazer companhia para mim mesma. Fui perdendo as cascas, o invólucro, mergulhando em águas cada vez mais densas e profundas, perdendo o contorno humano, transladei para outra, outro lugar,
desconhecido, terrível e
maravilhoso, que não eu.
Mas houve as mãos que me ajudaram na travessia.
As suas mãos, Clarice.
As suas mãos de escritora que tantas vezes anseiam as nossas para irmos contigo, nessa grande odisseia de uma mulher que viaja para dentro de si e se despersonaliza. Ela desvira o Eu. Ela se te revira. Não é brincadeira o que acontece aqui, é coisa que se lê e se toma e entra no próprio sangue, é saber xamânico, potente, destruidor e revivificador. Nada se cria sem desfazer essas camadas de noções fossilizadas sobre nós mesmos e o mundo. Tuas palavras agem sobre mim, ainda e sempre.
Agora, neste ano de 2020, é seu aniversário de 100 anos.
A paixão foi escrito em 1964. Imagino você aqui escrevendo sobre o agora, o momento presente atravessando as paredes de sua casa e de seu corpo e se metamorfoseando em palavras que você escreve e essas palavras agem, transformam a vida.
Nós estamos olhando a vida que se nos olha, Clarice.
A vida se nos é, e se me é, tão radicalmente agora, que voltei a andar com teu livro colado em mim. Livro que é registro desse tempo eterno onde fracassamos e vamos de novo, com o fracasso das nossas existências e palavras.
Das milhares de apresentações possíveis que eu poderia fazer, eu escolho dizer sim; sim, leia este livro como experiência que se vive. Entrar pelo corpo, e ir com as palavras mais "pelo que elas fazem do que pelo que elas falam", ir com G.H., atravessando esses portais e ir se perdendo nas paredes, nos hieróglifos da casa, nas marcas deixadas pelo outro, e ir indo, parando e recuperando o fôlego até mergulhar completamente nesta obra extraordinária que nunca mais vai parar de acontecer.
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Mariana Lima,
Atriz e produtora