No imaginário fragmentado de uma personagem narradora, os estilhaços se alinham para restituir, pouco a pouco, algo que lhe foi furtado pelo regime nazista. Romance-documentário de Mireille Abramovici retoma um tema explorado pela literatura contemporânea: o holocausto. Alguns leitores podem achar que esta é uma pauta em vias do esgotamento, mas Abramovici, em ´Com Tinta Vermelha´, prova que questões como esta dificilmente perdem interesse. Neste relato investigativo, as memórias de uma família desmembrada pelo nazismo se agitam pela voz de uma filha-sem-pai, do pai sequestrado pela guerra. Esta é uma história sobre a restituição do impossível. Com um estilo direto, mas não menos peculiar, Abramovici nos faz mergulhar na guerra com agilidade e sem rodeios, levando-nos pela angústia e pela ansiedade da inviabilidade mesma de alinhavar os fragmentos de imagens pulverizadas pelo velho continente. Apoiada nas conversas e nos documentos e correspondência guardados quase obsessivamente por sua mãe, como o pressentimento de um testemunho necessário, Mireille sai em busca de arquivos e testemunhas de um tempo trágico na França, Romênia e Alemanha, para criar e fazer viver a memória e o amor pelo pai que nunca conheceu, escrevendo de um presente revirado por sentimentos, experimentando a dor e a aflição de sua família e de todos os afetados pela guerra. Trecho: ´Olhar para trás, com o risco de torcer o pescoço. Não, não tenho medo de ser transformada em estátua de sal. Minha louca esperança: trazer os mortos a vida. Vou retomar o fio da perseguição organizada pela polícia alemã, desvendar o inextrincável mecanismo da burocracia nazista. Olhar nos olhos dos chefes devotados, esses criminosos, esses serial killers engajados no famoso serviço IVB, serviço central de segurança do Reich. Minha inexperiência é total. Só tenho uma solução, agarrar-me as pequenas coisas, aos detalhes minúsculos, inspecionar, fuçar a História, ir aos lugares, colar de novo os pedaços e me deixar arrastar pelo que vou descobrir. Strada Labirint, número 59, em Bucareste. Sob um sol de chumbo, percorro esse bairro que era, antes do golpe de Estado comunista, residencial. O lugar é charmoso. Observo as casas, suas molduras e rosáceas, seus frontões decorados, as cores azul-céu, ocre pálido, as janelas em meia-lua recobertas com cachos de flores de pedra, as vidraças que protegem as pequenas escadarias de majestoso mármore. Na Strada Cazavillan Luigi, um estudante atravessa a rua vazia. Hoje, as cornijas e molduras já desmoronaram. Cães vira-latas flanam pelas ruelas esburacadas. Procuro desesperadamente a antiga bijuteria de meu avô. Encontro-me numa avenida um pouco afastada do centro, frente ao grande cemitério judeu Filantropei, oferecido por meu bisavô Borelly-Wisner a comunidade israelita de Bucareste. Moritz Wisner, meu avô, tinha orgulho dele. Hoje, eu, sua neta, perambulo por entre os túmulos invadidos pelo mato, empurro as portas pesadas de ferro enferrujado, observo as estrelas judaicas desenhadas em rosáceas amarelecidas que a luz do dia atravessa. Habitualmente indiferente as coisas religiosas, estou, nesse instante, impressionada por essas emanações do sagrado. Moritz era comerciante. Mais precisamente, joalheiro.´