Contos Escolhidos, de Franz Kafka, exerceu uma influência tão profunda na literatura moderna que situou-se numa altura onde só encontramos as produções de Proust, Joyce e Mann. A obra é um campo cheio de surpresas, em que o leitor desprevenido se depara a todo momento com parábolas, paradoxos, aforismos e fragmentos que desafiam a compreensão imediata, embora falem instantaneamente à sensibilidade, criando um tumulto de reações e impressões que se debatem em busca de uma racionalização. Fica-se como que perdido naquele mundo aparentemente desprovido de latitudes e longitudes históricas, geográficas e sociais, onde reina um estranho encantamento e o domínio todo-poderoso de forças inqualificáveis, esquisitamente ameaçadoras, que destroem o curso rotineiro das coisas e semeiam a incerteza e a insegurança. Um fatum cego determina a irrealização de uma humanidade sem categorias, indistinta, desarraigada de qualquer chão material e de qualquer atividade prática, entregue apenas à reflexão sobre a sua impotência, à percepção da intransponível armadilha em que se acha encurralada. É o império da marginalidade e da angústia do homem expulso dos quadros da normalidade e do cotidiano, submetido, sem culpa, a um misterioso “processo”. Entretanto, seria inconsequente e unilateral qualquer interpretação que se baseasse apenas neste “negativo” em que se delineiam, à primeira vista, tão-somente os desajustes e as visões de uma personalidade neurótica. Para uma compreensão mais geral da obra de Kafka, é mister revelar o “positivo” de sua procedência nacional e cultural e desnudar, assim, os fundamentos ocultos de seus climas fantasmagóricos e de seus personagens desenraizados. E de fato, sem maior aprofundamento na questão, a simples análise de algumas constantes desse universo — a instabilidade, o medo, a ambivalência, a constante procura de uma segurança inatingível, a marginalidade etc. — indica a presença transfigurada de sentimentos e problemas que nascem de conflitos e choques da vida em sociedade, que se desenvolvem no plano histórico e temporal de situações concretas e que não poderiam originar-se de meras elucubrações de um só espírito, por mais febricitante e inventivo que fosse. Na realidade, a obra de Kafka apresenta-se como um documento paradoxal da crise de nossa sociedade. Escrita na véspera e durante a Primeira Guerra Mundial, por um judeu emancipado mas consciente do trágico malogro desta emancipação, por um profissional liberal que detesta a sua profissão, por um revoltado incapaz de dar vazão física ou prática à sua revolta, por um autor de língua alemã que vivia num ambiente eslavo, este documento recolhe e sublima em plano metafísico o drama das classes intermediárias desnorteadas em meio ao desmoronar da velha ordem de coisas, dos grupos minoritários mecanicamente desnacionalizados e esmagados em sua personalidade cultural, das atividades sociais marginalizadas e desvitalizadas, das individualidades ilhadas nas fermentações de seu ego. Nele, através de toda a sua complexidade, de toda a sua simbologia quase cabalística, estampa-se um retrato deveras nítido do judeu, do intelectual e, numa última e principal transcendência, do assim chamado homem de classe média. Por uma singular confluência de fatores, Kafka reuniu todos esses em sua pessoa e por um estranho destino literário expressou-os na plenitude de suas agonias espirituais e morais, na vivência integral de seus desajustamentos sociais, nacionais, culturais e psicológicos, e nas próprias peculiaridades de sua criação artística.