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Uma impecável graeca eruditio, um aparato documental e crítico idôneo, e o adequado enquadramento filológico e histórico da matéria – estes três requisitos, que presidem às investigações de grande porte no domínio do saber clássico-humanístico, de tão minguada presença entre nós, autenticam a singular e ousada abordagem deste ensaio.
A singularidade da abordagem está na própria forma literária do ensaio: uma flânerie benjaminiana por entre os versos e os vestígios da vida de Safo. Em concordância com essa forma, episódica, digressiva e fragmentada, está o tipo ousado de abordagem, que disfarça a hermenêutica que lhe é implícita: um estilo de interpretação problemática e aproximativa que, parecendo zombar dos métodos, como o narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, se arrisca a descobrir o sentido essencial da lírica de Safo, produzindo-lhe a compreensão. Da concordância entre a forma persuasiva e sedutora, que enleia do princípio ao fim o leitor, com o método de interpretação ajustado à fortuna dos textos e às vicissitudes de seu conhecimento histórico, deriva a notável abrangência e a alta qualidade literária que distinguem Eros, tecelão de mitos – A poesia de Safo de Lesbos dos estudos congêneres.
Benedito Nunes
Joaquim Brasil Fontes empenhou- se em limpar os versos de Safo da tinta em que a soterram escoliastas (intérpretes) Ovídio, Baudelaire, Verlaine, entre eles. Com habilidades de erudito precavido, Joaquim Brasil Fontes confronta escólios antigos e modernos, de Ovídio a Baudelaire. Enquanto no século XIX cenas lésbicas proporcionavam a fruição masculina a duplicação erótica do corpo feminino, os antigos apontavam o amor lésbico com repulsa, contrário à natureza. A lésbica era para eles um monstro.
Removidos os escólios, Joaquim Brasil Fontes se dedica a uma atenta reinterpretação de Safo, procurando conciliar o aparentemente inconciliável: a paixão e a poesia do quotidiano, indigitada por helenistas como de menor importância. E o faz através da heraclitiana harmonia dos contrários na construção da totalidade. Octavio Paz, para quem o poema diz simultaneamente o sim e o não, abriu-lhe o caminho.
A comparação com Homero mostra que Safo confere à paixão amorosa virtudes da poesia guerreira. O eu que ama assume comportamentos da aristocracia armada, em decadência. A religiosidade – em franca dissolução na poesia de hoje, mas presente ainda nos versos de Hölderlin – traduz-se no culto às estrelas, à lua, à noite, às flores, ao convívio. Carácter cúltico assumem todas as actividades femininas. E isso é grego. Nem adversários do irracionalismo como Sócrates resistiram ao feitiço de brisa, bosques e regatos. Pensador, guerreiro e apaixonado não se excluem. No eu, toca-se a totalidade.
Dispomos agora dos recursos necessários à compreensão do título do livro: Eros, tecelão de mitos. “Tecelão de mitos” traduz mythoplokos, um dos epítetos de Eros. Com os significados de narrativa e palavra, o mito entretece tudo. Resgatado das musas heróicas, e subordinado a Eros, o mito (a poesia) constrói um emaranhado de percursos que levam ao outro, à sociedade e ao universo, aproximando belicosidade. ternura, fraqueza e graça. Esse quadro é bem mais significativo do que mórbidas interpretações do passado.
Joaquim Brasil Fontes é o leitor que Safo requer: paciente, bem aparelhado, arguto e – para coroar excelências – poeta.
Donaldo Schüler
Joaquim Brasil Fontes é tradutor de Safo para o português: Variações sobre a lírica de Safo (São Paulo: Estação Liberdade), Fragmentos dos fragmentos da lírica de Safo (Florianópolis: Noa Noa). Publicou, entre outros textos, Poética do fragmento (Belém: I.A.P.), A musa adolescente (São Paulo: Iluminuras), As obrigatórias metáforas (São Paulo: Iluminuras), O livro dos simulacros (Florianópolis: Clavicórdio).