A surpreendente presença do negro Casmurro no Jararacumbach, à época dos dramáticos anos de chumbo que marcaram a vida dos brasileiros durante a truculenta ditadura militar, transporta o leitor ao ponto central da trama romanesca. Sua atitude destemida – destemperada, igualmente – coloca Casmurro em conflito direto com um coronel do exército, o que transforma sua vida em alvo de mirabolante perseguição sem trégua. Casmurro, porém, encontra solidariedade em um grupo de três mulheres, cujo senso de liberdade, solidariedade e resistência oferece-lhe espaços de proteção contra os militares e lhe proporciona momentos encorajadores de desenvolvimento social e cultural. Instrumentalizadas pelo professor Bento da UJ, Eileen, Anamária e Bertília incumbem-se não apenas de garantir a segurança física de Casmurro contra a sanha do comandante, mas também lhe oferecem oportunidade de conviver com as experiências culturais de apropriação das contribuições germânicas, italianas e afro-brasileiras que energizam a pujança humana do Jararacumbach, marcado pela imigração. No romance epistolar, o leitor acompanha as peripécias políticas e culturais de Casmurro por meio das cartas que as três mulheres – Bento e Casmurro, também – enviam a Capitu, esposa de Casmurro, abandonada quando este chega ao Jararacumbach. A UJ – Universidade do Jararacumbach – tampouco escapa do zelo persecutório dos milicos dos anos da ditadura, na figura do tenente que, semanalmente, apresenta-se no campus para espionar a vida acadêmica. É Capitu, depois da leitura dos vários relatos, quem conceitua o que é ser negro na Jararacumbach, mas não intui qual o dom de Casmurro. Para ela, no âmbito racial, a identidade negra resultaria de movimentos interétnicos e interculturais, emblematizados pela tripla mobilidade do negro Casmurro. O dom de Casmurro é um fenômeno, cuja decifração é mais sofisticada. Pode ser racial, político ou cultural. Pode incluir essas variabilidades; pode até não incluir nenhum desses aspectos. Pode também ser um dom literário, marcado pelo realismo mágico, cuja possibilidade inscreve-se nas múltiplas prescrições pós-modernas que o romance viabiliza, conceitualmente.